A placa, a bolsa e eu

A placa, a bolsa e eu

a história de dor e superação de uma mulher ostomizada

“Como é transar com uma bolsa de colostomia?” Por Marianna Kiss

Carol Luduvice, uma parceira de lives me fez essa pergunta porque sua prima usava uma, mas eu nunca tinha ouvido um caso como este. Daí, como a boa terapeuta sexual curiosa que sou, fui para a rede pesquisar e encontrei duas blogueiras, uma australiana e outra britânica, que deram dicas de como lidar com uma bolsa que, involuntariamente, poderia se encher de fezes e vazar durante uma cena sexual. Ações como naturalizar a situação, aplicar aromatizantes na bolsa, esvaziá-la e realizar refeições leves antes da transa parecem ser simples, contudo, sempre há uma história no meio caminho que não permite que as coisas sejam tão fáceis assim.

A bolsa de colostomia é uma ferramenta médica utilizada para a coleta de conteúdo fecal em pacientes que sofrem com doenças inflamatórias no intestino – como a doença de Crohn ou colite ulcerativa, por exemplo –, câncer intestinal ou problemas que exigem a amputação do reto e que passaram por cirurgia. No procedimento da colostomia é realizada uma abertura, também chamada de estoma, na parede abdominal próxima ao final do intestino, o reto. A bolsa de colostomia é encaixada no estoma e ela pode ser usada temporariamente ou de forma permanente dependendo do caso.

IMG-20230718-WA0029-1024x682 A placa, a bolsa e eu

Logo me interessei pelo tema e fomos à entrevista com Keké Cruz, uma mulher linda, de 30 anos, sergipana e com um filho de oito anos, mesmo tempo em que vive sua história de dor e superação com a colostomia. Tudo começou durante seu parto vaginal onde o obstetra realizou uma episiotomia dilacerando seu esfíncter anal. A episiotomia é um corte feito no períneo – região entre a vagina e o ânus – da mulher para ampliar o canal de parto, um procedimento comum se não fosse pelo erro médico. Se já não bastasse toda a dor ocasionada pela episiotomia mal sucedida, ela foi enviada pra casa defecando pela vagina como se fosse algo fisiologicamente normal e daí começou seu martírio com 32 cirurgias que a fizeram abandonar seu sonho de ser enfermeira e seu hobby que era jogar futebol. Logo após a primeira cirurgia, seu então marido pediu o divórcio alegando que era jovem demais para se relacionar com uma mulher doente e ela se deparou com a maternidade solo no intermédio de sua nova enfermidade. Inicialmente, o uso da bolsa de colostomia seria temporário por três meses, mas estes se estenderam a seis e agora ela usa, de forma permanente há cinco anos. Além da cirurgia de reconstrução do esfíncter anal, ela passou também por procedimentos para acabar com a fístula retrovaginal – fezes pela vagina –, para a retirada de pedaços do intestino e oito hérnias do estômago e por causa de gaze esquecida pelo médico em seu abdômen.

Keké entrou na Justiça contra o Estado e o médico obstetra e o processo foi negado. Ela recorreu e conquistou o direito a uma indenização, contudo o seu advogado – o qual ela não pode citar o nome – lhe deu um golpe e sumiu do mapa junto com o seu dinheiro, o qual hoje lhe faz muita falta visto que ela gasta cerca de 20 mil reais por mês com a manutenção da bolsa de colostomia e as medicações que precisa tomar. Ela recebe um auxílio doença do Estado, mas está longe de ser suficiente para cobrir todas as despesas. As bolas de colostomia são usadas de forma temporária durante os tratamentos paliativos de tumores na região colorretal ou que possuem obstrução no intestino e não podem passar por cirurgia definitiva, e de forma permanente nos casos de amputação do reto, retocolite aulcerativa ou polipose adenomatosa. E elas pode ser drenáveis, quando têm uma abertura que permite que a bolsa seja esvaziada sempre com a vantagem de ser trocada com menos frequência, ou não drenáveis, quando são completamente fechadas e descartáveis precisando ser trocadas toda vez que o conteúdo ocupar 1/3 de sua capacidade. E ainda pode ser de peça única junto a placa – um material usado pelos ostomizado para colar a bolsa ao corpo – a qual tem duração média de três dias, sendo mais acessível do ponto de vista financeiro, ou de duas peças onde a bolsa é separada da placa, a qual fica fixada no abdômen e encaixada ao coletor.

IMG-20230718-WA0027-1024x682 A placa, a bolsa e eu

A nossa entrevista não parou por aí e eu fui logo perguntando como ficou a sexualidade dela durante esse tempo e ela relata tudo num verdadeiro misto de dor e alegria. Após a separação do pai de seu filho, ela se sentiu “um nada” como mulher, sozinha e desvalorizada por algo que não foi sua culpa. Com seu sonho profissional interrompido e em meio a dores físicas diárias devido às cirurgias, ela entrou em depressão. Uma noite, em 2016, se pegou tomando 30 comprimidos para dormir, pois achava que assim sua dor desapareceria, só que quase morreu. Foi então que se agarrou ao apoio da família e de sua religião, de seu Deus.

Os dias não foram fáceis e ela já havia se esquecido de sua própria sexualidade até que, num telefonema que atendeu por engano, ela conheceu um verdadeiro parceiro, Isaias, com quem tem cinco anos de relação e está noiva. Isaias, ao ouvir sua voz, mesmo ela alegando que ele havia ligado para a pessoa errada, não hesitou e disse que seria o genro que a mãe dela sempre sonhou.

Hoje, Keké diz que está bem e que ama se olhar no espelho e quando eu pergunto o que ela usa na hora do sexo para disfarçar a bolsa de colostomia ela responde, com muito orgulho, “eu só uso a placa, a bolsa e eu”. Ou seja, ela não usa de nenhum artifício para esconder sua bolsa ou qualquer acidente que possa ocorrer na hora H, inclusive, a bolsa já vazou fezes em cima do noivo e o que ele fez? “Levantou, tomou um banho, trocou a minha bolsa, me limpou e continuamos transando”. Simples assim, como toda parceria deveria ser. Inclusive, ela complementa que está com seu desejo sexual em alta e que Isaias foi muito paciente respeitando seu tempo, até ser ostomizada, ela defecava pela vagina e por isso não se sentia à vontade para ter relações sexuais.

IMG-20230718-WA0031-682x1024 A placa, a bolsa e eu

Hoje, Keké faz psicoterapia, tem atendimento psiquiátrico, toma medicação porque ainda sente dor no local diariamente e teve de aprender sozinha todos os procedimentos de troca, pois nenhum profissional das clínicas públicas de sua cidade tinha esse conhecimento. Ela conta a todos sobre sua história e, mesmo sobrevivendo de doações, sai de casa sempre para ajudar pessoas que passaram pela cirurgia recentemente. Além da manutenção da bolsa, ela ainda tem a despesa do uso de cinco sondas urinárias diárias visto que teve sua bexiga perfurada em uma das cirurgias de reconstrução do esfíncter anal.

Marianna Kiss é Sexóloga, Terapeuta Sexual e Tântrica Taoísta, professora de sexualidade na Formação em Sexcoach Oficial. Em sua coluna DONA DO PRÓPRIO PODER ela fala sobre a saúde íntima e sexualidade da mulher.

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